quarta-feira, 4 de maio de 2011

CARNE

Bastou-me abrir a porta do apartamento para saber que ainda não saíras definitivamente da minha vida.
O teu cheiro entranhara-se no papel de parede tal como o fedor da serpente se recusa a abandonar a pele descascada. Tomo folgo, cerro os olhos, estico os braços e deixo que as mãos leiam o texto rugoso da parede do corredor. Quatro unhas como quatro garras escavam quatro sulcos, quatro rastilhos de pólvora.
A sala acolhe-me oca, muscular, do tamanho de um punho.
A luz intermitente de faróis amarelos projecta a sombra das lâminas dos estores nas paredes, nuas como telas. Aí se desenham os psicadélicos contornos dos móveis.
Deslizo descalça até ao centro. Em bicos de pé, levanto os braços e tento atingir a lâmpada vermelha.
O teu cheiro continua encarnado.
Abro a janela e deixo que o quarto respire fundo. Sirvo-me um Jameson bem aviado e bebo-o de um só trago. Jogo-me no sofá e sem querer derrubo o atendedor de chamadas.
O som da tua voz espalha-se, espesso e cavernoso: “Ana, … Ana, … atende caralho! Se pensas que isto fica assim, enganas-te… Vais arrepender-te…”.
Atiro-te pela janela fora: “AAAAAAAAnnnnnaaaaaaa!!!!!!”, gritas em pleno voo. Assisto, paralisada, à queda vertiginosa do aparelho que se desfaz em estrondosos estilhaços lá em baixo, na calçada.
Por instantes pensei que sufocava. Fecho a janela, corro os estores, apago a luz, ligo o esquentador. Tiro a roupa e meto-a na máquina de lavar. Entro na banheira, encho os pulmões de ar e mergulho.
Emerjo calma, conscientemente insípida, inodora e incolor.
Seco-me e sento-me na beira da cama. Calço as meias-ligas de nylon. Ponho aquele vestidinho preto e o colar de marcassite que me ofereceste. Vejo-me ao espelho vermelho e pinto os lábios.
Inesperadamente eufórica, canto na sala escura: “If it makes you happy, it couldn’t be that bad! If it makes you happy, why the hell are you so sad?”
Visto o casaco e confiro: chaves do carro, chaves de casa, cartão, chapéu, cachecol. Tranco a porta enquanto trinco uma maçã. Meto-me no carro e arranco.
Ligo a aparelhagem e levo com os Portishead: “… ‘cause nobody loves me, that’s true. Not like you do …” E pensar que há horas atrás apenas isto fazia sentido.

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