terça-feira, 15 de novembro de 2011

mundos e portas

Malditos poetas, mau caminho na terra e no mundo que gosta de alcatrão, novo, laboratorial, sem base fóssil. O mundo tem mundos e portas dentro da porta do mundo, e as raparigas perguntam as respostas sem espelhos ou espelhos das portas no mundo da porta que a rapariga abre, antes da porta, no mundo do espelho apagado na porta de outro espelho... que poeta pode ser o que uma rapariga precisa do mundo? A porta - nada mais - sem espelho, luz ou sombra caída, quando a rapariga não vê a poesia e pergunta ao poema onde está o poeta; em que bolso escondes a chave? malditos poemas com poetas dentro, horas deixadas no espelho embaciado, sem estrela ou significante aparentemente plausível, ruminados e mesmo assim mundo para porta com portas e mundos dentro.

Raul Albuquerque


a rapariga bateu à porta do poeta e ele ofereceu-lhe um livro com cerejas dentro. e agora não conseguem parar de conversar. malditos caroços, que já nem atrapalham a poesia, porque ele retira-os, como se retiram as vírgulas em excesso de um texto cheio de soluços.
a rapariga e o poeta riem e choram com o mar à frente sem pontuação

rapariga anónima

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

DOS POETAS


DAS RAPARIGAS

Outros devem ir por longos caminhos
até aos obscuros poetas;
perguntam sempre a alguém
se não terão visto algum cantando
ou de mãos pousadas em cordas.
Só as raparigas não perguntam
que ponte leva às imagens;
sorriem só, mais luminosas que fiadas de pérolas
guardadas em conchas de prata.

Cada porta das suas vidas abre
para um poeta
e para o mundo.

Rainer Maria Rilke


DA RAPARIGA

malditos poetas, mau caminho, terra e o mundo gosta de alcatrão, mas o mundo tem mundos dentro e portas dentro da porta dos mundo e as raparigas perguntam as respostas sem espelhos, ou espelhos das portas no mundo da porta que a rapariga abre, antes da porta no mundo do espelho apagado na porta de outro espelho... que poeta pode ser o que uma rapariga precisa do mundo, o porta, nada mais, sem espelho, luz ou sombra caídos quando a rapariga não vê a poesia e pergunta ao poema onde está o poeta, em que bolso esconde a chave

Raul Albuquerque

ZOE CHURCHILL

Order (Real or Imagined)

Slipcaste from a disposable paper plate.

domingo, 25 de setembro de 2011

o que se passa quando não se passa nada

‎De novo na esplanada do café de Perec, espero, em vão como sempre, que passe Catherine Deneuve, que vive na praça. Mas, uma vez mais, ela não aparece. Surpreende-me, um pouco mais tarde, ler na revista Lire que Vargas Llosa também vive nessa praça, tem um dúplex num edifício do século XVIII: "Neste bairro, sinto-me como em casa, É um bairro muito literário. Umberto Eco também vive na praça. Há quinze amos que espero ver Catherine Deneuve, mas ela nunca aparece." Nesse momento, aparece Deneuve. Fico mudo de surpresa e pergunto-me se, durante um momento, Deneuve não foi ".




















DIÁRIO VOLÚVEL, 2006 - Janeiro, pag. 16
Enrique Vila-Matas

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Bluebird - Charles Bukowski


there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pur whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he's
in there.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody's asleep.
I say, I know that you're there,
so don't be
sad.
then I put him back,
but he's singing a little
in there, I haven't quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it's nice enough to
make a man
weep, but I don't
weep, do
you?

sábado, 7 de maio de 2011

mares de palavras
vagas
dunas
mão cega que penteia
a areia

marés de palavras
vazas
prenhas
luas cheias
arado que rasga
sulca
cava
veia
vaivém
vai e vem
vem
palavras que soltam
versos ondulantes
dos meus ais

quarta-feira, 4 de maio de 2011

CARNE

Bastou-me abrir a porta do apartamento para saber que ainda não saíras definitivamente da minha vida.
O teu cheiro entranhara-se no papel de parede tal como o fedor da serpente se recusa a abandonar a pele descascada. Tomo folgo, cerro os olhos, estico os braços e deixo que as mãos leiam o texto rugoso da parede do corredor. Quatro unhas como quatro garras escavam quatro sulcos, quatro rastilhos de pólvora.
A sala acolhe-me oca, muscular, do tamanho de um punho.
A luz intermitente de faróis amarelos projecta a sombra das lâminas dos estores nas paredes, nuas como telas. Aí se desenham os psicadélicos contornos dos móveis.
Deslizo descalça até ao centro. Em bicos de pé, levanto os braços e tento atingir a lâmpada vermelha.
O teu cheiro continua encarnado.
Abro a janela e deixo que o quarto respire fundo. Sirvo-me um Jameson bem aviado e bebo-o de um só trago. Jogo-me no sofá e sem querer derrubo o atendedor de chamadas.
O som da tua voz espalha-se, espesso e cavernoso: “Ana, … Ana, … atende caralho! Se pensas que isto fica assim, enganas-te… Vais arrepender-te…”.
Atiro-te pela janela fora: “AAAAAAAAnnnnnaaaaaaa!!!!!!”, gritas em pleno voo. Assisto, paralisada, à queda vertiginosa do aparelho que se desfaz em estrondosos estilhaços lá em baixo, na calçada.
Por instantes pensei que sufocava. Fecho a janela, corro os estores, apago a luz, ligo o esquentador. Tiro a roupa e meto-a na máquina de lavar. Entro na banheira, encho os pulmões de ar e mergulho.
Emerjo calma, conscientemente insípida, inodora e incolor.
Seco-me e sento-me na beira da cama. Calço as meias-ligas de nylon. Ponho aquele vestidinho preto e o colar de marcassite que me ofereceste. Vejo-me ao espelho vermelho e pinto os lábios.
Inesperadamente eufórica, canto na sala escura: “If it makes you happy, it couldn’t be that bad! If it makes you happy, why the hell are you so sad?”
Visto o casaco e confiro: chaves do carro, chaves de casa, cartão, chapéu, cachecol. Tranco a porta enquanto trinco uma maçã. Meto-me no carro e arranco.
Ligo a aparelhagem e levo com os Portishead: “… ‘cause nobody loves me, that’s true. Not like you do …” E pensar que há horas atrás apenas isto fazia sentido.

UM A UM

terça-feira, 3 de maio de 2011

e.e. cummings

poesia com pessoas, re-verberando (em) uma só:

"... you am in i are in we"

CONTER HISTÓRIAS


Compro e meto-me em casa.
Por breves instantes esqueço tudo: o nome da rua, o número do bilhete de lotaria, o café ao lume, as letras que compõem as palavras. Sento-me na cama agarrada ao pacote. Dormes a sono solto. Quando acordares estou metida numa embrulhada.
Á medida que desfaço o laço, tomo coragem para contar-te tudo.
O cavalgar do meu coração é ensurdecedor, mas consigo dominá-lo a tempo, e tu não nem suspeitas.
Levanto-me de mansinho e esquivo-me até à casa de banho.
A luz ténue que entra pela goteira invade as paredes de azulejo e ilumina o frasquinho. Ergo os braços. Estou nas suas mãos. Deslizo-o por entre os dedos: o frasco é azul e a luz é dourada, a luz é azul e o frasco é dourado, o frasco é a luz e o azul é adorado. Levo-o à boca e bebo até à última gota.
Regresso à cama e deito-me a teu lado, amargurada.
Por longos instantes lembro-me de tudo: os nomes das coisas, os números das pessoas, o sabor das palavras que aquecem a rotina.
O gosto permanente da tinta esvai-se pelo canto da boca e discorre pelo travesseiro.
Posso dormir em paz. Chegou a aurora que esperei a vida toda.
Quando acordares, lê. Cansei-me de conter histórias.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

ENSIMESMADA

A Semicolcheia não ligava a se|mínima à pausa homónima
até vê-la seminua.
Ficou semi|confusa.
Perdeu a cabeça e vagueou pela casa apenas de haste e colchete.
Já não gorjeia, a Semicolcheia.
Perdeu o pio.
Pos-se de canto.
Senta-se à beira da redondez da Semibreve.
Sente-se redundante.
E languidamente semi|suspira por uma pausa que lhe devolva a voz

SEMINUA

segunda-feira, 21 de março de 2011

tenho muito apreço
pela sua pessoa
disse ele sem pressa
a palavras ditas não se olha o vate
são cinquenta euros
da cabeça aos pés
assinala o gesto semi-automático
e já agora acrescento
não vejo
não oiço
não beijo
só falo

pé ante pé
paredes meias
a braços com palavras
ditas pela metade
descalço-me
e meto-me na cama
pele ante pele
pela calada
turva madrugada


sábado, 5 de março de 2011

ARTE POÉTICA

Se o poema não serve para dar o nome às coisas
outro nome e ao seu silêncio outro silêncio,
se não serve para abrir o dia
em duas metades como dois dias resplandecentes
e para dizer o que cada um quer e precisa
ou o que a si mesmo nunca disse.

Se o poema não serve para que o amigo ou a amiga
entrem nele como numa ampla esplanada
e se sentem a conversar longamente com um copo de vinho na mão
sobre as raízes do tempo ou o sabor da coragem
ou como tarda a chegar o tempo frio.

Se o poema não serve para tirar o sono a um canalha
ou ajudar a dormir o inocente
se é inútil para o desejo e o assombro,
para a memória e para o esquecimento.

Se o poema não serve para tornar quem o lê
num fanático
que o poeta então se cale.



António Ramos Rosa
O poeta na rua, Quasi



MADISON AVENUE


Convém fugir das pessoas. Os amigos

têm palavras, gestos e olhares
com uma pedra dentro que faz mal.

Convém fugir das pessoas. A família
é a mão que segura a cabeça
para que esta debaixo de água permaneça.

E o amor é apenas essa palavra
que uma mulher nos atira para os braços.
Ao ir-se a mulher, seu nome dói.

É grato à alma estar-se isolado.
É grato ao corpo estar isolado.
Morrer é só isolar-se um pouco mais.

J.M. Fonollosa
in Cidade do Homem: New York, Antígona


ONDE A POESIA...

Onde a poesia se exibe como um espectáculo espectacular
não é poesia
onde a audácia do poema não é única
não é poesia
onde a poesia não é inocência de natureza fluvial
não é poesia
onde a poesia não é escandalosamente pura
não é poesia
onde a poesia não é filha do deserto nem da sede
não é poesia
onde a poesia não é presença viva que nasce da solidão e da ausência
não é poesia
onde a poesia não se oferece no seu abandono
não é poesia
onde a poesia não é poesia
não é poesia



António Ramos Rosa
O poeta na rua, selecção e prefácio de Ana Paula Coutinho Mendes, Quasi

sexta-feira, 4 de março de 2011

XVIII

a noite como um prego a noite louca
a noite com árvores na boca

Mário Cesariny
Manual de Prestidigitação




quinta-feira, 3 de março de 2011

EM SEGUNDA FILA NA ESTANTE

Há um livro que nunca chegarás
a ler um livro que te escapou


da mão estava exposto na livraria
mas outra coisa chamou a tua


atenção ou alguém o arrumou em segunda fila na estante...


Tu não o sabes - como o poderias
saber? - mas esse livro descreve


como e quando vais morrer


Jorge de Sousa Braga


EM SEGUNDA FILA NA ESTANTE

Há um livro que nunca chegarás
a ler um livro que te escapou


da mão estava exposto na livraria
mas outra coisa chamou a tua


atenção ou alguém o arrumou em segunda fila na estante...


Tu não o sabes - como o poderias
saber? - mas esse livro descreve


como e quando vais morrer


Jorge Sousa Braga









quarta-feira, 2 de março de 2011

EXÓNIMO PROCURA-SE

À procura de um exónimo...

Krystyna (In Polish)
Kristina (In Swedish, Czech, Russian and in German)
Kirsten (In Scandinavian)
Christine (In French and in English)
Christian (In English and in French)
Christina (In English)
Kristy (In English)
e ainda...
In Swedish: Kjerstin
In Scottish: Kirstin (F)
In Scandinavian and in German: Kristin
In Scandinavian: Stina
In Italian, Spanish, Portuguese and in Romanian: Cristina
In Italian: Cristiana
In Hungarian: Krisztina
In German, Scandinavian and in English: Christa
In German: Kristen
In German: Kerstin
In Finnish: Kirsi
In Finnish and Estonian: Kristiina
In English (Modern): Krystina
In English: Kristia
In Bulgarian: Hristina




ESTENDE A TUA MÃO

estende a tua mão contra a minha boca e respira,
e sente como respiro contra ela,
e sem que eu nada diga,
sente a trémula, tocada coluna de ar
a sorvo e sopro,
ó
táctil, ininterrupta,
e a tua mão sinta contra mim
quanto aumenta o mundo

Herberto Helder
in a faca não corta o fogo




‎"I like the word `decadent,’ All shimmering with purple and gold … it throws out the brilliance of flames and the gleam of precious stones. It is made up of carnal spirit and unhappy flesh and of all the violent splendors of the Lower Empire; it conjures up the paint of the courtesans, the sports of the circus, the breath of the tamers of animals, the bounding of wild beasts, the collapse among the flames of races exhausted by the power of feeling, to the invading sound of enemy trumpets. The decadence is Sardanapalus lighting the fire in the midst of his women, it is Seneca declaiming poetry as he opens his veins, it is Petronius masking his agony with flowers."

– Paul Verlaine




When possible, use hands instead of metaphors

David Thomas Broughton - Ambiguity



DIÁRIO

A partir de agora, todo o poema que fale de amor, fora.
Todo o poema que não revolucione, fora.
Todo o poema que não ensine, fora.
Todo o poema que não salve vidas, fora.
Todo o poema que não se sobreviva, fora.
Vou deixar um anúncio no jornal:
Procura-se poeta. Trespasso-me.

Criatura 4
(Ana Salomé, p.13)

AS PALAVRAS

Vira-as,
pega-as pelo rabo (chiai, putas),
açoita-as,
adoça-lhes a boca às reguilas,
enche-as, balões, pica-as,
chupa-lhes sangue e tutano,
seca-as,
capa-as,
pisa-as, galo galante,
torce-lhes o gasganete, cozinheiro,
depena-as,
estripa-as, toiro,
boi, arrasta-as,
fá-las, poeta,
faz que se traguem todas as tuas palavras.


- Octavio Paz
(tradução de Albino M.)




‎"A desventura máxima é a solidão. É tão verdade que o reconforto supremo - a religião - consiste em encontrar uma companhia que nunca falhe - Deus. A oração é um desabafo, como com um amigo. A obra equivale à oração, porque nos põe em contacto com os que dela tirarão proveito. O problema da vida é, portanto, o seguinte: como romper anossa solidão, como comunicar com os outros. Assim se explica a existência do matrimónio, da paternidade, das amizades. Mas que a felicidade resida nisto, balelas! Porque se deva estar melhor comunicando com os outros do que só, é estranho. É talvez apenas uma ilusão: a maior parte do tempo, estamos muitíssimo bem sós. É agradável ter, de tempos a tempos, um odre em que nos possamos despejar e, em seguida, bebermo-nos a nós próprios: dado que pedimos aos outros apenas aquilo que já temos em nós. É um mistério o motivo por que não basta perscrutar e beber em nós próprios e seja preciso reavermo-nos por intermédio dos outros. (O sexo é um incidente: o que recebemos é momentâneo e casual; pretendemos algo de mais secreto e misterioso de que o sexo é apenas um sinal, um símbolo)."

Cesare Pavese





SE EU PUDESSE

Se eu pudesse
ter-te em vez dos versos,
ou ter um verso
em vez de ti,
ou ter os olhos
como os de um gato
para perscrutar a noite
onde isso se decide.

Pedro Mexia
Avalanche, Quasi, Vila Nova de Famalicão, 2001

RILKE SHAKE

salta um rilke shake
com amor & ovomaltine
quando passo a noite insone
e não há nada que ilumine
eu peço um rilke shake
e como um toasted blake
sunny side para cima
quando estou triste
& sozinha enquanto
o amor não cega
bebo um rilke shake
e roço um toasted blake
na epiderme da manteiga

nada bate um rilke shake
no quesito anti-heartache
nada supera a batida
de um rilke com sorvete
por mais que você se deite
se deleite e se divirta
tem noites que a lua é fraca
as estrelas somem no piche
e aí quando não há cigarro
não há cerveja que preste
eu peço um rilke shake
engulo um toasted blake
e danço que nem dervixe

Angélica Freitas




vestem-se as dores
nos bastidores da minha memória
esta é a puta
que estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a ingénua
não estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a nostálgica
traz a mão estendida
nunca descruzou as pernas
despem-se as dores nos
bastidores da minha memória

Benedicte Houart,
inimigo rumor




NINGUÉM SE LEMBRA

De quem ao coração vai buscar água
ninguém se lembra nem
de quem por tê-lo
pregado à pele mostra os seus pregos ferrugentos.

Luís Miguel Nava
Poesia Completa (1979-1994)
Rebentação
passeou pelos espelhos dos dias
suas clandestinas alegrias
que mal se reflectiram desertaram

Ruy Belo
Todos os Poemas I
Assírio & Alvim
‎"let's start a magazine
to hell with literature
we want something redblooded

lousy with pure
reeking with stark
and fearlessly obscene

but really clean
get what I mean
let’s not spoil it
let’s make it serious

something authentic and delirious
you know something genuine like a mark
in a toilet

graced with guts and gutted
with grace"

squeeze your nuts and open your face

e. e. cummings,
No Thanks (1935)

BORBOLETA

A borboleta que poisou
no teu mamilo perdeu
vontade de voar.

Jorge de Sousa Braga

ÉMULOS

Foi como amor aquilo que fizemos
ou tacto tácito? – os dois carentes
e sem manhã sujeitos ao presente;
foi logro aceite quando nos fodemos
Foi circo ou cerco, gesto ou estilo
o acto de abraçarmos? foi candura
o termos juntos sexo com ternura
num clima de aparato e de sigilo.
Se virmos bem ninguém foi iludido
de que era a coisa em si – só o placebo
com algum excesso que acelera a líbido.
E eu, palavrosa, injusta desconcebo
o zelo de que nada fosse dito
e quanto quis tocar em estado líquido.

Margarida Vale de Gato
Mulher ao Mar, Mariposa Azual, 2010




UM INSTANTE

Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis
sem começo
nem fim
aqui me tenho
sem mim
nada lembro
nem sei
à luz presente
sou apenas um bicho
transparente

Ferreira Gullar,
Muitas Vozes (1999)

EPIGRAMA COM SUMO

Desfolhando o livro
como se descascasse a laranja,
as palavras caíam-lhe como gomos
por entre os lábios

Nuno Júdice

ÉPIGRAMME

Aimons, foutons, ce sont plaisirs
Qu´il ne faut pas que l´on sépare;
La jouissance et les désirs
Sont ce que l´âme a de plus rare.
D´un vit, d´un con, et de deux coeurs,
Naît un accord plein de douceurs,
Que les dévots blâment sans cause.
Amarillis, pensez-y-bien:
Aimer sans foutre est peu de chose
Foutre sans aimer ce n´est rien.

La Fontaine
via Poesia Incompleta




Dia
sem poesia
não é dia
é noite escura

Mas a poesia
é noite escura

Adília Lopes,
Caderno
&etc

A TERCEIRA COISA

Ela vinha.
tu falavas-lhe
até que a podias já tocar
E agora é a tua fala
quem lhe toca
de tão perto
que mais que ouvi-la
ela a sente.
Ela vem e chega.
Tu a descobres ou inventas,
mas decide-te.
Eu descubro-te e invento-te
e então eu oiço-a dizer-nos:

Eu sou a terceira coisa;

A personagem: o herói -
- a terceira pessoa.

Manuel Gusmão,
A Terceira Mão
Caminho
Eu não sou digno de nenhuma violência
Nem nenhuma violência pode ser
Suficientemente violenta para ser
digna de mim.

Eduardo White,
A Fuga e a Húmida Escrita do Amor
Texto Editores




BARTLEBY

- Bartleby!
Não houve resposta.
- Bartleby! - agora num tom mais forte.
- Bartleby! - berrei.
Tal qual um fantasma, afecto às leis da invocação mágica, à terceira chamada apareceu ele à entrada do seu ermitério.
- Vá à sala ao lado e diga ao Nippers que venha aqui.
- Preferia não o fazer - disse ele lenta e respeitosamente, e calmamente desapareceu.

Bartleby,
Herman Melville
Assírio & Alvim




26

O TABERNEIRO hoje está risonho - trouxeram-lhe pornografia fresquinha e ele gosta disso. O pior é a família, aburguesada, censória... Terá de escondê-la, como aos goles pela garrafa, de meia em meia hora.
É triste um adulto ter de esconder as mãos.

Miguel Martins,
O Taberneiro
Poesia Incompleta

BEIJO IX

Não me dês sempre um beijo húmido,
nem sussurros acompanhados de doces risos,
nem sempre tombes enleada,
no meu pescoço, desfalecida.
Também as doçuras têm a sua medida.
(...)

Jean Everaerts
Mil Vezes Mil Beijos
O Livro dos Beijos

CONDIÇÕES MÍNIMAS

Esta sarça é interdita a matilhas;
há que mudar a pele para comer
o fogo. Não que eu faça render
qualquer talento, ou tenha em vasilhas

semi-intactas ilustres maravilhas:
uma lista de coisas a fazer,
solidão, pedra de isqueiro, um revólver,
e um aparelho já com pouca pilha

e que só uso eu; a nós vontade
basta - e alguma luz: pede-se intensa,
mas sem que obste o brilho à entrega cega,

aceitas? compreendes? aguentas?

no nervo negro desta densidade
penetra só sentindo que sustentas
e me conténs quando eu me desintegro.

Margarida Vale do Gato,
Relâmpago magazine, 2010




Gostava de gostar de gostar.
Um momento... Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa-de-cabeceira.
Continua... Dizias
Que no desenvolvimento da metafísica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de ideias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel...

Álvaro de Campos




The poet is a liar who always speaks the truth. 

Jean Cocteau
Breathe-in experience,
breathe-out poetry.

Muriel Rukeyser

HAPPINESS

So early it's still almost dark out.
I'm near the window with coffee,
and the usual early morning stuff
that passes for thought.

When I see the boy and his friend
walking up the road
to deliver the newspaper.

They wear caps and sweaters,
and one boy has a bag over his shoulder.
They are so happy
they aren't saying anything, these boys.

I think if they could, they would take
each other's arm.
It's early in the morning,
and they are doing this thing together.

They come on, slowly.
The sky is taking on light,
though the moon still hangs pale over the water.

Such beauty that for a minute
death and ambition, even love,
doesn't enter into this.

Happiness. It comes on
unexpectedly. And goes beyond, really,
any early morning talk about it.

Raymond Carver




WALT WHITMAN

I am multitudes


DE OMBRO NA OMBREIRA

De ombro na ombreira vejo
no outro lado outro
ombro na ombreira

Entre ombros nas ombreiras
nenhum assombro:
ombros ombro a ombro
param ombro a ombreira

Quando tudo escombro
ainda todos seremos
ombro na ombreira

Alexandre O'Neill




LIGNIN

Why secondhand bookstores smell good

"Lignin, the stuff that prevents all trees from adopting the weeping habit, is a polymer made up of units that are closely related to vanillin. When made into paper and stored for years, it breaks down and smells good. Which is how divine providence has arranged for secondhand bookstores to smell like good quality vanilla absolute, subliminally stoking a hunger for knowledge in all of us."

HAKAWATI

“A hakawati is a teller of tales, myths, and fables (hekayât). A storyteller, an entertainer. A troubadour of sorts, someone who earns his keeps by beguiling an audience with yarns. Like the word “hekayeh” (story, fable, news), “hakawati” is derived from the Lebanese word “haki,” which means “talk” or ”conversation.” This suggests that in Lebanese the mere act of talking is story-telling.”

From ”The Hakawati” by Rabih Alameddine

FUCK YOU POEM # 45

Fuck you in slang and conventional English.
Fuck you in lost and neglected lingoes.
Fuck you hungry and sated; faded, pock marked and defaced.
Fuck you with orange rind, fennel and anchovy paste.
Fuck you with rosemary and thyme, and fried green olives on the side.
Fuck you humidly and icily.
Fuck you farsightedly and blindly.
Fuck you nude and draped in stolen finery.

Fuck you while cells divide wildly and birds trill.
Thank you for barring me from his bedside while he was ill.
Fuck you puce and chartreuse.
Fuck you postmodern and prehistoric.
Fuck you under the influence of opium, codeine, laudanum and paregoric.
Fuck every real and imagined country you fancied yourself princess of.
Fuck you on feast days and fast days, below and above.
Fuck you sleepless and shaking for nineteen nights running.
Fuck you ugly and fuck you stunning.

Fuck you shipwrecked on the barren island of your bed.
Fuck you marching in lockstep in the ranks of the dead.
Fuck you at low and high tide.
And fuck you astride
anyone who has the bad luck to fuck you, in dank hallways,
bathrooms, or kitchens.
Fuck you in gasps and whispered benedictions.

And fuck these curses, however heartfelt and true,
that bind me, till I forgive you, to you.

Amy Gerstler




“A língua e eu somos um casal de amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quem até hoje foi negada a benção eclesiástica e científica. Entretanto, como sou sertanejo, a falta de tais formalidades não me preocupa. Minha amante é mais importante para mim”.

João Guimarães Rosa



and what if wind were a window
what if I loved
like wind loves a window

Andrea Baker




ERA ASSIM:

era assim:

queres?
queres algo?
queres desejar?
desejas querer?
desejas-me?
desejas querer-me?
queres desejar-me?
queres querer-me?
queres que te deseje?
desejas que te queira?
queres que te queira?
quanto me
queres?
quanto me
desejas?
ah quanto te quero
quando te quero
quando me queres...

Ana Hatherly
um calculador de improbabilidades, Quimera, 2001





RÓI

Rói qualquer possibilidade de sono
essa minimalíssima música
de cupins esboroando
tacos sob a cama

imagino a rede de canais
que a perquirição predatória
possa ter riscado
pelo madeirame apodrecido

se aguço o ouvido
capto súbito
o mundo dos vermes

Carlito Azevedo
Editora 7 Letras, Rio de Janeiro, 2001




NOVA PASSANTE

1. sobre
esta pele branca
um calígrafo oriental
teria gravado sua escrita
luminosa
— sem esquecer entanto
a boca: um
ícone em rubro
tornando mais fogo
suor e susto
tornando mais ácida e
insana a sede
(sede de dilúvio)

2. talvez
um poeta afogado num
danúbio imaginário dissesse
que seus olhos são duas
machadinhas de jade escavando o
constelário noturno:
a partir do que comporia
duzentas odes cromáticas
— mas eu que venero (mais que o ouro verde
raríssimo) o marfim em
alta-alvura de teu andar em
desmesura sobre uma passarela de
relâmpagos súbitos, sei que
tua pele pálida de papel
pede palavras
de luz

3. algum
mozárabe ou andaluz
decerto
te dedicaria
um concerto
para guitarras mouriscas
e cimitarras suicidas
(mas eu te dedico quando passas
no istmo de mim a isto
este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios)

Carlito Azevedo
Editora 7 Letras, Rio de Janeiro, 2001




NEM AÍ...

Indiferente
ao suposto prestígio literário
e ao trabalho
do poeta
à difícil faina
a que se entrega para
inventar o dizível,
sobe à mesa
o gatinho
se espreguiça
e deita-se e
adormece
em cima do poema

Ferreira Gullar
Em Alguma Parte Alguma, 2009



OFF PRICE

Que a sorte me livre do mercado
e que me deixe
continuar fazendo (sem o saber)
fora de esquema
meu poema
inesperado
e que eu possa
cada vez mais desaprender
de pensar o pensado
e assim poder
reinventar o certo pelo errado

Ferreira Gullar